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Lutar por justiça em meio às injustiças do Judiciário

Há uma espécie de descrédito generalizado com o Judiciário. Parece haver um consenso de que os processos demoram demais; quando não, parecem ser julgados de acordo com a conveniência dos julgadores, não raro em atenção a interesses escusos e pouco republicanos. Não convence mais os espíritos o aforismo de que a Justiça tarda, mas não falha: parece que ela falha tão frequentemente quando tarda — e isso quando não tarda e falha a uma só vez.

Não venho aqui tirar a razão dos que pensam assim: o senso-comum não é a verdade científica, mas costuma ser fonte mais de verdades do que de enganos. O meu ponto é outro: é que, com todos os defeitos que possam ser atribuídos ao Judiciário, tê-lo é melhor que não o ter. Digo mais até: tê-lo é uma necessidade incontornável da natureza humana, que exige uma maneira de resolver os problemas surgidas da vida em sociedade. Ora, os conflitos vão continuar surgindo inexoravelmente enquanto os homens forem homens: haverá promessas quebradas, agressões cometidas, famílias desfeitas, danos causados. O que se haverá de fazer?

Não há cavaleiros andantes em quantidade e virtude suficientes para desfazer todos os malfeitos do mundo moderno, e ainda que os houvesse não é próprio da natureza humana valer-se exclusivamente da força individual para reparar as injustiças. Também os fracos precisam ter voz e vez: preferencialmente por meio de canais institucionais, permanentes, acessíveis e de funcionamento previsível. As instituições de Justiça — com todos os seus defeitos — precisam existir. Cabe a nós trabalhar para que elas sejam o menos defeituosas possível.

Veja-se um exemplo. O sistema judiciário brasileiro dispõe de mecanismos que, em teoria, servem para minimizar as injustiças. Assim, por exemplo, o duplo grau de jurisdição: toda causa decidida pela primeira vez (em regra, por um juiz singular) é passível de ser reapreciada em outra instância, por outras pessoas (em um órgão colegiado), com poder de confirmar ou corrigir a decisão original. Até aqui, tudo bem. O problema óbvio que alguém pode encontrar neste modelo é que a decisão de primeira instância corre o risco de terminar não valendo nada, porque a última palavra é a de quem vai decidir os recursos. Mais ainda: uma vez que a estrutura do judiciário (como aliás qualquer estrutura hierárquica) é piramidal, o número de pessoas no topo da pirâmide pode ser muito diminuto. Como consequência, ocorre que um número muito pequeno de pessoas concentram o efetivo poder de decidir. E com isso a lógica se inverte: o sistema recursal, que deveria aumentar o número de pessoas envolvidas na solução dos litígios, termina fazendo com que seja um grupo extremamente restrito quem decida tudo.

Um observador apressado poderia dizer “ah, mas então é melhor acabar com essa história de recursos”. Acontece que o sistema recursal surgiu, como dissemos, para ampliar e não para restringir o número de decididores: essa é a justificativa teórica do modelo. É inegável que há uma flagrante disfuncionalidade no fato (digamo-lo de uma vez) de o STF sozinho, com seus onze ministros, concentrar o poder de decidir tudo no país; mas penso que é preferível o aperfeiçoamento da prática ao abandono da teoria. Se o modelo não está bem implementado, penso ser menos traumático mudar a implementação do que trocar o modelo.

Infelizmente isso é uma discussão quase que integralmente de lege ferenda, porque com as normas hoje vigentes é muito difícil não depender em última instância da boa-vontade dos Ministros. Mas isso não é o fim do Direito nem o fim da advocacia, porque a maior parte dos problemas do mundo real — das pessoas de verdade, dos dramas pessoais — ocorre longe dos corredores marmoreados da Suprema Corte. Não tenho as estatísticas, mas sei que a maior parte dos processos judiciais termina na primeira instância; outros tantos se encerram no segundo grau, nos Tribunais locais ou regionais. Seguramente mais de noventa e cinco por cento da atividade jurisdicional ocorre longe de Brasília. É espaço bastante para nós — que não somos Supremos nem temos pretensões a sê-los — encontrarmos o nosso lugar ao sol e fazermos bem o nosso trabalho.

Porque a maior parte de nós não é mesmo capaz de fazer grandes coisas, de revolucionar a sociedade, de aperfeiçoar o Judiciário brasileiro; mas todos somos capazes de fazer pequenas coisas bem feitas. O meu compromisso enquanto advogado não é com as disfuncionalidades do sistema recursal brasileiro, é com o direito do meu cliente. E é por isso que eu digo que, sim, com todo os (inegáveis) problemas do nosso Judiciário, ainda é possível lutar nos fóruns e tribunais, ainda é possível esperar por Justiça.